
Depois de certa idade, ficamos mais ou menos autobiográficos. Isso transparece no que a gente fala ou escreve. A libertação de Ingrid Betancourt me remeteu à morte de Che Guevara. Uma lembrança foi levando a outra. Até meu encontro com o mundo comunista do final de 1957 para começo de 1958, como observador da União Nacional dos Estudantes (UNE) na Europa Oriental. Principalmente junto à União Internacional dos Estudantes (UIE), com sede em Praga (Tchecoslováquia), e à Federação Mundial da Juventude, com sede em Budapeste (Hungria).
O choque entre comunismo e capitalismo pude sentir ao passar de Berlim Oriental para Berlim Ocidental. A queda do Muro de Berlim e a reunificação das duas Alemanhas, anos depois, me revelariam que o meu espanto tivera alguma coisa de sexto sentido. Na Hungria, não precisei de dom premonitório para perceber que o comunismo era algo imposto, como nos demais países do Leste, pelo domínio soviético. No hotel de Budapeste em que fiquei hospedado, os buracos de bala mostravam como foi derrubada pelos tanques da URSS a contra-revolução de 1956. Prévia do que veio a acontecer, em 1968, com a Primavera de Praga.
Se o comunismo era marcado pelo pecado capital de não prescindir da violência, nos moldes do stalinismo, os jovens que conheci com seu ardor pelo socialismo revolucionário detinham a marca da generosidade. A eles dedicarei um capítulo em A Crônica de Minha Aldeia. Quando o império soviético ruiu, em 1989, projetei escrever texto com diálogo imaginário entre Olga Benário e Che Guevara diante da realidade traduzida na globalização, correspondente, para alguns, ao fim da história. Meu projeto está de pé.
De pé sei que não está o projeto guevarista de imaginar a América Latina como uma “imensa Sierra Maestra”, com legiões de guerrilheiros ameaçando os Estados Unidos com “um, não... mas, vinte Vietnãs!” Era o que pensava, ainda em Cuba, onde a insurreição se beneficiou da Guerra Fria. A morte de Che Guevara, que completaria 80 anos em 15 de junho de 2008, interrompeu trajetória que se desdobrou pela Argentina, Guatemala, México, Cuba, Congo e Bolívia. Tudo terminou em 8 de outubro de 1967, em La Higuera. Então confessou ao tenente-coronel Andrés Solich, antes da execução, ter sido derrotado sem conseguir a adesão de um só camponês boliviano.
(No Brasil, a esquerda, lutando pelo poder, com guerrilha ou sem guerrilha, ou no poder, governando, é sempre o mesmo vexame. No Araguaia ou em Brasília, com Jango ou Lula).
O ciclo guerrilheiro da América Latina se completa com as Farc, travestidas de narcoterrorismo. E teve o seu epitáfio em San José del Guaviare, na Colômbia. Quando Ingrid, com três americanos e onze soldados e policiais colombianos, foi resgatada sem o disparo de um só tiro, numa operação tipo o conto do vigário, e atores – suprema ironia – vestindo jalecos e camisetas de Che. Uma lição da história.
A libertação da ex-senadora e ex-candidata à Presidência do país foi no dia 2 de Julho, data maior da Bahia. Ingrid recebeu a mais alta condecoração da França, a medalha da Legião de Honra, nas comemorações da Queda da Bastilha, em 14 de Julho de 1789, marco inicial da Revolução Francesa.
A carga simbólica da libertação do grupo de 15 reféns das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia teve repercussão mundial. O hino colombiano foi entoado até em Paris, em meio às manifestações em favor dos seqüestrados ainda retidos na selva amazônica. A guerrilha é mais rejeitada do que nunca como estratégia de tomada do poder para “a passagem do proletariado a classe dominante”. Em seu lugar, o livre jogo democrático com a suposta garantia de iguais oportunidades para todos.
Não sinto alegria por saber apenas utopia uma sociedade sem classe. Nem me alegro pela nossa finitude. Só me resigno ante a realidade do mercado e da morte. Na conformação panglossiana de que “temos de cultivar a nossa horta”. E, se o chão for brasileiro, combater a erva daninha de falsos populismos aloprados. Tal como na travessia de Berlim, pressinto outro muro ameaçado, entre a beleza e a feiúra, e até ouço o grito: “Feios de todos os países, uní-vos”. Assunto para o próximo artigo (Leia em A Tarde)
Um comentário:
Kanami sang imo blog. Daw spaghetti.
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